Como eleger bons amigos?
- Secretaria da ACTA
- 23 de jul. de 2023
- 7 min de leitura
A amizade é parte integrante da vida humana e naturalmente favorável ao alcance do que concebemos como felicidade, pois o amigo é um cooperador na realização mútua do bem. Surge, porém, a dificuldade de eleger bons amigos, isto é, escolher as pessoas a quem se há de confiar a partilha dos melhores e piores momentos da vida.
O objetivo do presente artigo é expor a refinada análise que faz Santo Tomás de Aquino, na Suma Teológica, a respeito das formas de amizade, suas causas e efeitos. Assim, intenta-se auxiliar na eleição de bons amigos a partir da clareza de sua função e natureza.
À vista disso, o roteiro do artigo é: 1. O amor: fonte e sustento da amizade; 2. A virtude da amizade: sua constituição e finalidade; 3. A hierarquia dos tipos de amizade; 4. Como eleger bons amigos? 5. Considerações finais.

1. O amor: fonte e sustento da amizade
Santo Tomás de Aquino expõe que o amor possui principalmente três causas[1]: o bem, o conhecimento e a semelhança.
O bem é causa do amor porque, como expõe Aquino, ninguém deseja algo se não enxerga benefício. E, assim, o bem é a primeira causa do amor porque é o responsável por gerar o movimento do apetite, tornando-se seu objeto.
O conhecimento, por sua vez, é causa do amor porque o bem só é desejado após ser apreendido; ninguém pode desejar algo sem antes ter notícia de sua existência. Deste modo, estando a apreensão anterior ao desejo, conhecer o amado é necessário para tender a ele.
Enfim, a semelhança é a causa propriamente dita do amor, e se dá de dois modos[2]: o primeiro modo de semelhança é aquele que se dá quando o amante e o amado possuem a mesma forma, o que lhes causa uma certa unidade; tal é o caso de dois homens que amam a vida intelectual e, partilhando dos mesmos valores, unem-se para perseguir esse ideal.
O segundo modo de semelhança se dá quando o amado possui em ato aquilo que o amante possui em potência e deseja possuir; tal é o caso de um homem que deseja alcançar o nível de conhecimento que outro possui, e nutre a amizade somente por esse fim.
Em vista dessas causas, Santo Tomás de Aquino concorda com Aristóteles e afirma que “amar é querer bem a alguém”[3], distinguindo com isso duas formas de amor. A primeira forma, denominada amor por concupiscência, ocorre quando se quer o bem para alguém. Exatamente por isso esta primeira forma se subdivide em duas: querer o bem para si e querer o bem para outro, ambas ancoradas no segundo modo de semelhança.
A segunda forma, denominada amor de benevolência, ocorre quando se quer bem a própria pessoa a que se ama, de maneira que o bem do amado é “tomado” para si, e o mal que ele padece é também sentido pelo que ama. Perceba-se que a diferença desta para a primeira forma é que no amor por concupiscência a pessoa se inclina para um terceiro, o bem (que será atrelado a alguém), enquanto no amor de benevolência se inclina para a própria pessoa amada, sendo por isso ancorado no primeiro modo de semelhança.
Essas considerações podem parecer arbitrárias à primeira vista, mas são necessárias para apreender as principais formas de amizade e, a partir disso, eleger os amigos adequados.
2. A virtude da amizade: sua constituição e sua finalidade
Na Suma Teológica, Tomás de Aquino aponta a amizade (ou afabilidade) como a virtude necessária para que “[...] as relações entre homens se ordenem harmoniosamente num convívio comum, tanto em ações quanto em palavras, ou seja, é necessário que cada um se comporte com relação aos outros de maneira conveniente [...]”[4].
No sentido mais elevado de amizade, a harmonia das relações é nutrida pelo amor mútuo entre as partes envolvidas e, por isso, a reciprocidade é necessária para que alguém seja chamado verdadeiramente amigo.
Num segundo sentido, consiste unicamente em palavras e atos exteriores, sendo chamada amizade apenas em razão de semelhança com o primeiro, e é o tipo que se tem pelas pessoas em geral, comportando-se com decência para manter a boa convivência — e isto não consiste em ser falso, mas tão somente em realizar a inclinação natural do homem à sociabilidade, à cooperação com os iguais de sua espécie.
3. A hierarquia dos tipos de amizade
Diante disso, podemos classificar a amizade em três principais tipos, o que faremos usando a mesma terminologia de Aristóteles: útil, deleitável e honesta.
A amizade útil ocorre quando se ama não a pessoa, mas um bem que ela possui e que se deseja usufruir. Esse bem não é necessariamente algo material, mas pode ser, por exemplo, o conhecimento que alguém possui e pode transmitir — perceba-se que, nesse caso, a amizade pela vida intelectual mencionada anteriormente estaria corrompida, pois o pano de fundo seria tão somente a utilidade; e uma vez que o útil cessa, a amizade deixa de existir.
A amizade deleitável, por sua vez, ocorre quando se ama o prazer que a companhia de uma pessoa proporciona. Neste caso, ainda não é um amor à pessoa mesma, mas ao prazer gerado na amizade, o que fragiliza a relação; se o prazer cessar, ou se tornar árduo de obter, a amizade pode ser desfeita.
Enfim, a amizade honesta ocorre por causa da virtude: duas pessoas se amam mutuamente em vista da virtude, e cooperam na busca pela realização dos bens necessários à felicidade. Nada impede que, numa amizade honesta, um amigo se mostre útil ao outro ou agrade com sua companhia; mas o diferencial é que o útil e o deleitável não são o fundamento dessa amizade, e sim a virtude, proporcionando aos amigos uma solidez capaz de resistir aos defeitos um do outro e às possíveis intempéries que insurjam contra essa relação.
A amizade honesta é substancial, e verdadeira amizade; a útil e a deleitável são acidentais, sendo ditas amizade apenas em razão da semelhança que têm com a primeira: uma unidade (frágil) entre os amigos e a convivência harmoniosa nos gestos e palavras exteriores.
Postas em hierarquia, a mais elevada é a amizade honesta, que a tudo resiste; a segunda é a deleitável, que mantém uma mínima harmonia exterior; e, por fim, a última e mais baixa é a útil, que se funda somente num bem que um dos amigos pode proporcionar — e coloco em último porque é possível a existência de uma relação em que duas pessoas completamente opostas, para continuar usufruindo de um bem aparente, permanecem convivendo.
4. Como eleger bons amigos?
Após a exposição desses critérios, a resposta para a pergunta “como eleger bons amigos?” ganha seus primeiros contornos, cabendo apenas ordenar as distinções gerais realizadas e aplicá-las em uma situação concreta.
Já entendemos que existem três tipos de amizade (útil, deleitável e honesta) e quais as suas características, sendo que as duas primeiras são apenas acidentais, e a última, amizade honesta, é amizade segundo a virtude e exige amor de benevolência, reciprocidade e identidade entre os indivíduos.
Assim sendo, para formar boas amizades, no sentido autêntico e mais elevado dessa virtude, podemos estabelecer os seguintes critérios:
a) O amor precisa ser recíproco, sincero e evidente — como já demonstrado, não há verdadeira amizade se apenas um dos amigos é quem ama; e o amor, além de mútuo, precisa ser sincero (desinteressado, sem razões segundas); enfim, precisa ser evidente, pois a reciprocidade é fragilizada quando o amor não é evidenciado por ações concretas, e a sinceridade é duvidosa quando o amigo deseja manter oculta a amizade sem uma causa grave.
b) Os amigos precisam amar as mesmas coisas, tanto quanto possível — como supradito, a semelhança na ordem do ser é a principal causa do amor. Assim, amar as mesmas coisas é a principal fonte de união, permitindo até mesmo que pessoas de realidades muito diferentes sejam amigas. Sem essa semelhança de ideais, a amizade encontra graves riscos: o que seria da amizade de um católico com alguém que constantemente ataca sua fé? Seria a ruína.
c) Os amigos precisam dar-se a conhecer — além da semelhança, outra causa do amor é o próprio bem, que adiciona o aspecto de desejável ao ser. Assim, dar-se a conhecer permite que os amigos cresçam no amor, pois só podemos apreender o bem naquilo que conhecemos, e amar é querer bem a alguém. Naturalmente, não há obrigação nenhuma em contar todos os segredos. O ponto-chave é partilhar de experiências e ideias que fortifiquem a amizade.
5. Considerações Finais
Essas são as linhas gerais de uma teoria da amizade em Tomás de Aquino. Vale ressaltar que as considerações realizadas acima são mencionadas em uma passagem ou outra da Suma Teológica. Para uma teoria mais completa e pormenorizada, há de se consultar o Comentário à Ética de Aristóteles que aqui não utilizamos em razão da brevidade e finalidade do artigo.
Importante dizer que nem todos os amigos serão de amizade honesta; muitas das nossas amizades serão apenas úteis por causa das circunstâncias: os amigos que fazemos em razão do trabalho, da faculdade, do curso... Outras serão apenas deleitáveis porque os únicos momentos possíveis de encontrar tais amigos é em festividades e comemorações.
Na verdade, a amizade autêntica é raríssima, de tal forma que se pode dizer que quem encontrou um amigo, encontrou um tesouro. E, no processo de amadurecimento, a pessoa compreende que não há problema alguma nisso, desde que as demais relações que mantém não se oponham a uma vida virtuosa!
Cada um avalie sua realidade, e aplique convenientemente os critérios.
Notas
[1] Suma Teológica, Ia IIae, q. 27.
[2] A palavra original usada pelo Aquinate, similitudo, não se reduz a uma mera semelhança exterior dos acidentes, mas a uma relação analógica. Assim, o primeiro modo de semelhança se dá por identificação na ordem do ser: “o que tu és, eu também sou”; o segundo modo de semelhança se dá no apetite, que é identificação no ser acidental: “o que tu tens, e eu não, desejo para mim”.
[3] Suma Teológica, Ia IIae, q. 26, a. 4, sol.
[4] Suma Teológica, IIa IIae, q. 114, a. 1, sol.
Bibliografia
SANTO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica – Vol. 3. Ia IIae. Tradução Carlos-Josaphat Pinto de Oliveira. São Paulo: Edições Loyola, 2005.
______. Suma Teológica – Vol. 6. IIa IIae. Tradução Carlos-Josaphat Pinto de Oliveira. São Paulo: Edições Loyola, 2005.
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